Foi dado como morto e hoje é a mascote que dá vida ao
Leixões
De tratar a relva a encarnar a personagem Edison, do estádio
às escolas, do voleibol à natação, passando pelo futebol. Esta é a história de
Júlio Alfama, o faz-tudo matosinhense que é um exemplo de superação
Júlio Alfama Leixões
Tratar da relva, pintar cadeiras das bancadas, colocar lonas
de publicidade no estádio, ser roupeiro das modalidades, vestir a roupa de
mascote… Aos 49 anos, Júlio Alfama é o faz-tudo do Leixões.
Desde que em 2009 deixou de trabalhar na oficina que este
antigo pintor de automóveis passa os seus dias no Estádio do Mar. Está lá para
o que for preciso, seja ao serviço do clube ou da SAD.
Não deixa de ser irónico que ele, que dá a vida pelo clube de
Matosinhos, tenha já sido dado como morto. Morto mesmo. Não é figura de estilo.
«Foi em 1993, na antiga estrada 107, onde é agora a A28. De
toda a gente que foi atropelada ali, ninguém ficou vivo; tirando eu», começa
por recordar, detalhando: «Ao sair do autocarro, vindo do trabalho, dizem-me
que fui atropelado por um carro a alta velocidade, mas nunca me lembro de ter
atravessado ali. Deve ter sido, mas não me lembro de nada. Passado 15 dias,
acordei no Hospital São João.»
Júlio esteve em coma, partiu as duas pernas, foi operado,
demorou um ano e meio até voltar a andar sem muletas – ainda hoje tem graves
problemas de coluna –, mas tornou-se um exemplo de superação.
No Mar, ele é pau para toda a obra: «Se for preciso alguma
coisa, trato de fazer.»
«O bichinho» começou há mais de 20 anos ao acompanhar a
equipa de futebol, sobretudo nos jogos fora: «Chegávamos a qualquer lado e
parecia que jogávamos em casa. E depois houve aquela final da Taça no Jamor –
em 2002, que o Sporting venceu por 1-0. Foi a vez que em vi mais leixonenses.
Parecia que Matosinhos inteira estava lá…», recorda, antes de recitar de
memória alguns jogadores dessa equipa de Carlos Carvalhal, que veio do terceiro
escalão (II Divisão B) e fez frente ao campeão nacional.
Na pele de Edison
De tudo o que Alfama faz, o que mais o anima é vestir a
roupa do Edison.
Criada há dois anos, a mascote do Leixões foi assim batizada
em homenagem a Edison Magalhães, presidente histórico do clube na década de
1960, em cujo mandato o clube conquistou a Taça de Portugal (em 1961) e
inaugurou o Estádio do Mar (1964), que faleceu precocemente em 1974, com 43
anos, vítima de acidente de viação.
A aposta nos miúdos da casa fez de Edison o pai dos «Bebés
do Mar», a geração mais consagrada da história do clube.
«Vou a todos os jogos que posso como mascote: futsal,
voleibol, natação… Ainda no sábado fui para a bancada, na supertaça de voleibol
feminino frente ao FC Porto. Não me deixaram ir para junto da quadra…»,
lamenta, prosseguindo no mesmo tom: «Quando não há nada, até fico triste. Só
não vou para os jogos de futebol como mascote porque ao intervalo tenho de
ajudar a ajeitar a relva no campo. Não posso estar em dois sítios ao mesmo
tempo. Às vezes, gostava», sorri por fim o sr. Alfama – «senhor, não!»,
adverte. Só Alfama. Ou só Júlio.
Adiante, que a descrição continua. «Vou às escolas também,
às vezes com jogadores do futebol ou do voleibol. Algumas crianças já sabem que
sou eu naquele fato. Às vezes, conhecem-me na rua, quando ando sem aquilo, e
até me chamam “ó mascote!”», diz, contando-nos em seguida que este ano passou
uns fins-de-semana vestido de Edison na barraquinha do clube no Senhor de
Matosinhos.
Alfama gosta de vestir aquele fato para animar os miúdos. O
problema é a enorme cabeça do boneco, que tem de tirar ao fim de algum tempo.
«Faz calor e ardem-me as vistas. Agora, ao menos já furaram os olhos e dá para
ver. Dantes, via-se muito mal. Até tinha medo de andar em degraus», justifica o
homem por detrás da personagem, que às vezes tem de levar com as partidas dos
jogadores.
«Ainda há uns tempos, no fim de um treino em que vieram
muitas crianças de uma escola assistir, o Ricardo Barros, um jogador que não
está cá, virou-se para os miúdos e disse ‘Agora, é cair tudo em cima da
mascote!’ Bem… mandaram-me ao chão, arrancaram-me a cabeça e tal… Eu também
gosto de me meter com os adversários. No jogo de apresentação dos veteranos,
por exemplo, a primeira coisa que fiz foi ir ao balneário do adversário, o
Custóias, ouvir a tática.»
No estádio, no pavilhão, nas escolas ou pelas ruas de
Matosinhos, o objetivo de Alfama é sempre o mesmo: colocar um sorriso na cara
de quem por ele passa. Recentemente, a mascote foi protagonista de algumas
iniciativas do Leixões para as redes sociais, como uma caça ao bilhete.
Já recebeu até um convite da Fundação do Gil, que estava a
organizar um encontro de mascotes dos clubes no Parque das Nações. O evento,
porém, não foi por diante.
De faz-tudo a «Bebé do Ano»
Mesmo quando não encarna no colorido Edison, Júlio Alfama
anda sempre vestido à Leixões. O polo com o emblema é a sua imagem de marca e
até já lhe trouxe dissabores com as autoridades.
«Houve um dia que fui parado pela polícia às três da tarde…
Queriam a identificação, depois já não quiseram. Houve um polícia que me disse
“você não devia de andar assim vestido…” Davam-me a entender que não gostavam
que eu andasse com o símbolo do clube e pegaram comigo por causa disso, mas não
adianta… Até faço pior», alerta, continuando: «Às vezes, ia a Paços de Ferreira
visitar os meus sogros e ia lá para a sede do Paços vestido à Leixões.
Diziam-me: “qualquer dia és proibido de entrar aqui”. Mas nunca tive
problemas.»
A sua vida é dedicada ao Leixões e a própria família está
ciente disso. «Sou da Foz, mas desde 1993 vim morar para Matosinhos e mesmo já
estando na terceira casa nunca saí aqui da volta do Estádio do Mar. Agora, moro
nos prédios vermelhos mesmo aqui à beira», diz, antes de lhe perguntarem se
fica para almoçar no estádio. «Não, não… Vou almoçar a casa, que eu passo aqui
o dia. A minha mulher já me disse: “Só falta levares a cama e dormires lá”.»
Já a filha, de 20 anos, não aprecia que Alfama seja o boneco
do Leixões: «Ela nem pode ouvir falar que o pai é mascote. Não gosta.
Antigamente, eu trazia-a aqui quando era pequena. Ela conhecia os jogadores
todos, vinha pedir autógrafos, mas agora cresceu… Sabe como é…»
Mais dia, menos dia, a sua descendente acabará por perceber
que, mais do que mascote, o pai é, no fundo, um pedaço generoso da alma
leixonense.
Umas vezes a animar os pequenos, outras a tratar da relva do
Mar: «Ajudo o sr. José, que é o responsável. Ajeito e marco o campo, coloco os
tufos de relva no sítio, desenho as linhas com cordas nas medidas certas…»
Como que involuntariamente, Alfama resume o seu desígnio: «O
espírito é estar onde faz falta.»
Não por acaso, este ano ele foi premiado na gala do clube
com o «Bebé do Ano», a mais alta distinção do emblema matosinhense.
Oliveirinha, herói que marcou o golo na final da Taça, em
1961 – quando Edison Magalhães era presidente – subiu ao palco para entregar o
prémio.
Naquele momento, mesmo não o querendo, Alfama ter-se-á
sentido um senhor. Senhor, sim. O «Senhor Leixões».
Fonte: Sérgio Pires MAISFUTEBOL